segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Do outro lado da porta, por Celamar Maione

Celamar Maione (*)



Nove horas da manhã de um sábado nublado. Acordei com o vizinho de cima martelando na minha cabeça. Tive vontade de enfiar uma bermuda e esmurrar a porta do cidadão. Respirei fundo, contei até dez e saí da cama conformado. Antes de escovar os dentes fui até a cozinha pra fazer um café forte. Ao passar pela sala, vi que, por baixo da porta, entrava um líquido vermelho que parecia sangue. Parecia? Não, era sangue. Ou seria algum produto de limpeza novo e o faxineiro, descuidado, deixou escorrer?

Interfonei para o porteiro e perguntei se havia algum servente fazendo faxina pelos andares. Não havia. Curioso e ao mesmo tempo intrigado, me abaixei, passei a mão e quase vomitei. Era sangue. Cacete, havia alguém morto do outro lado. Homem ou mulher? Um animal? Ou seria uma brincadeira de mau-gosto das crianças do quarto andar? Abrir a porta e verificar? Mas se eu abrisse e o defunto estivesse encostado na soleira da porta e caísse na minha sala?

Por um momento tentei acreditar que era um pesadelo e logo passaria. Coloquei o café pra fazer. Entrei no banheiro com a cabeça latejando. Tomei uma ducha, escovei os dentes e voltei pra sala. O sangue invadia meu apartamento formando uma poça. E se eu ligasse para a polícia? Seria suspeito de assassinato? O telefone tocou. Dei um pulo. Era Carla, minha namorada. Tínhamos combinado de viajar pra Búzios e eu estava atrasado meia hora. Expliquei o que acontecia. Ela me chamou de mentiroso e desligou sem despedidas.

Tomei coragem e interfonei para o porteiro. Meia hora depois a polícia batia na minha porta acompanhada do Severino. Abri com o coração aos pulos. Olhei para o chão e lá estava o corpo de um desconhecido, aparentando 40 anos, com a cabeça ensanguentada, a boca aberta e os olhos arregalados. Sem conseguir respirar, eu olhava para o defunto, para a polícia e buscava explicação no rosto do Severino. Nervoso, o porteiro gaguejava contando aos policiais que o morto era genro do morador do 502, meu vizinho do lado .

O homem entrara pela manhã no prédio. A polícia perguntou pelo morador do 502. O porteiro explicou que ele costumava passear com o cachorro pela manhã.

A notícia se espalhou pelo prédio. Em poucos minutos, o corredor do meu andar lotou de curiosos. As mal-amadas que moravam em frente vibravam com a confusão. Finalmente um assunto diferente para animar o sábado – imaginei. As crianças desciam gritando pelas escadas. E a polícia me crivando de perguntas.

Eu repetia que nunca vira o morto, mas não convencia. O policial baixinho e de bigode era o mais desconfiado. Ele achava estranho que eu não tivesse ouvido nenhum barulho de briga. Expliquei que estava com a porta do quarto fechada e o ar-condicionado ligado. Que o único barulho que eu ouvia era do vizinho de cima martelando na minha cabeça.

Meu telefone tocou. Era minha mãe preocupada. Acabara de escutar a notícia no rádio. Tranquilizei-a dizendo que eu não era nenhum assassino. Uma da tarde, Seu Soares, sogro do morto, chegou acompanhado de Adamastor, um Coker de cinco anos. O policial baixinho e de bigode entrou com Seu Soares no 502. Ficaram trancados durante duas horas. Seu Soares saiu chorando acompanhado do policial.

Ele confessou o crime. Contou à polícia que seis e meia da manhã o genro tocou a campanhia. Os dois discutiram por causa de um empréstimo que o morto fez em nome dele e não pagou. Seu Soares ameaçou contar à filha. O genro o jurou de morte e saiu batendo a porta. Voltou e meteu a mão na maçaneta. A porta estava trancada. Tocou a campanhia. Amedrontado, Seu Soares abriu a porta com uma barra de ferro na mão. Novo desentendimento. Seu Soares tacou a barra de ferro na cabeça do genro . Ele caiu na minha porta. Acreditando que o marido da filha estava apenas desmaiado, foi passear com o cachorro e depois resolveu parar num boteco para tomar uma cerveja.

Assim que o rabecão retirou o corpo, por volta de três da tarde, pedi ajuda a um faxineiro para limpar o sangue . Passei o resto da tarde explicando às minhas tias e à minha mãe o que acontecera. Desliguei o telefone com a cabeça explodindo. Tomei um analgésico e ia me enfiar debaixo do chuveiro, quando o telefone tocou novamente. Era Carla. Ouviu o crime no noticiário e queria me pedir desculpa. Detesto mulher desconfiada. Recusei secamente o convite para uma saída. Ouvi alguns desaforos e levei com o telefone na cara. Não me importei. Já estava acostumado .

Durante vinte minutos deixei a água fria escorrer pelo meu corpo tenso. Saí do banho e meu estômago roncou. Estava até aquela hora apenas com um cafezinho. Resolvi comer uma pizza perto de casa. Equanto comia a pizza e bebia um chope, uma loira jantando numa mesa um pouco distante, não parava de me olhar . Correspondi. Paguei a pizza e fui até a mesa da mulher. Quando sentei, percebi a mancada. O pomo de adão denunciava. Pedi desculpas e corri para o meu apartamento. Saí do elevador e quando olhei para o chão, lembrei do corpo ensangüentado. Tive ânsia de vômito. Entrei no apartamento, fechei a porta do quarto, liguei o ar-condicionado e já me preparava para dormir, quando lembrei de uma coisa importante: a vassoura. Jurei que, se o filho da puta do vizinho de cima me acordasse,.martelando na minha cabeça, ia ter guerra. Exausto do mundinho de merda, adormeci quinze minutos depois .

(*) Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

A busca ilusória de toda a verdade

Milton Coelho da Graça (*)



O presidente Lula, com notável franqueza, admitiu, em entrevista exclusiva, concedida a Mário Sérgio Conti, da revista piauí, não ler jornais nem revistas, não usar a internet para ler notícias ou blogs nem ver noticiários na televisão.

Merval Pereira dedicou a essa entrevista o comentário de hoje, terça, 06/01, concentrando a análise no óbvio desagrado presidencial em relação ao trabalho da imprensa, considerado “tumultuado e injusto” desde o início do primeiro mandato em 2003.

E critica fortemente a dependência, para o conhecimento claro da realidade no país e no mundo, a que o presidente teria voluntariamente se submetido, em relação a um pequeno grupo de assessores, encarregados de “digerir”, “selecionar” e “comprimir” todo o noticiário que possa lhe interessar.

Merval diagnostica que esses “canais de informação do presidente estão mais para propaganda do que para notícia”. Chega mesmo a apontar essa deformação como causa de erros de avaliação dos efeitos da crise mundial sobre a nossa economia.

E é sobre este ponto que proponho uma outra discussão: será possível a um presidente da República obter hoje uma visão plural de tudo que possa influenciar suas decisões através da leitura atenta dos três ou quatro maiores jornais, pelo menos duas revistas semanais, algumas outras publicações mensais e sem perder pelo
menos os dois mais importantes noticiários da televisão?

A pergunta tem sentido duplo: 1. o presidente da República teria condições de cumprir tudo isso como “tarefas obrigatórias” ?; e 2. mesmo acompanhando com máxima atenção todas essas fontes de informação, ele teria acesso a essa “visão plural”?

Por obrigação profissional, respondo “sim” à primeira pergunta. Mas a vida me ensinou – e certamente também ao presidente Lula - que não dá para repetir o “sim” à segunda.

Não podemos esquecer que dirigentes de outros países e das maiores empresas também são obrigados a delegar a tarefa da “peneira” – quantitativa e seletiva do noticiário – para conseguir um quadro mais ou menos completo e confiável, no qual basear as decisões.

A coluna de Merval é ótima como reflexão e defesa da liberdade de imprensa, mesmo quando imprecisa ou até mentirosa. Mas louco seria o governante que apenas confiasse nela para saber todos os ângulos de visão da realidade.

Dois anúncios de jornais brasileiros buscaram há algum tempo realçar suas maiores qualidades. O Estadão publicou uma mensagem em que proclamava a “credibilidade” como seu principal atributo. A Folha lançou um outro, em que ia apresentando algumas qualidades de um chefe de Estado, ao mesmo tempo em que ia surgindo a foto de Adolf Hitler. E aí afirmava com toda a razão, que, às vezes, não é preciso dizer mentiras, mas apenas não contar TODA a verdade;

Esse é o “x” do problema, como diria Noel Rosa.

(*) Milton Coelho da Graça, 78, jornalista desde 1959. Foi editor-chefe de O Globo e outros jornais (inclusive os clandestinos Notícias Censuradas e Resistência), das revistas Realidade, IstoÉ, 4 Rodas, Placar, Intervalo e deste Comunique-se.